Uma parábola sobre a imigração, memória e simbolismos, dentre outros assuntos. O livro de Neil Gaiman nos apresenta Shadow (ou Sombra, em português), um ex-presidiário recém liberto que se vê envolvido em um conflito de antigos e novos Deuses, ou a representação dos mesmos. Quanto mais ele se envolve no conflito, mais ele (e os leitores) aprendem sobre a história dele. Peguei o livro em meados do ano passado, cansado de ler biografias de artistas brasileiros, e não me arrependi.
Comprei o ebook numa promoção e lia sempre que podia, acompanhando a esposa em consultas médicas e de noite, logo antes de dormir. Já conhecia os trabalhos do Neil Gaiman em quadrinhos e pelo livro Coraline (bem sinistro) e estava curioso sobre como o autor desenvolveu a história de fantasia em um prosa mais extensa.
É bacana ver que ele descreve situações quase cotidianas para nos mostrar um mundo mágico. Vemos o protagonista pegando um avião, dirigindo um carro, conversando com as pessoas. Mas aos poucos, o sobrenatural e a surrealidade se inserem em parágrafos e cenários com descrições de situações comuns.
O ritmo do livro é lento. O cenário trata de Deuses, ou a representação dos mesmos, que convivem lado a lado com os seres humanos. Essas figuras precisam da “fé” das pessoas para continuarem existindo.
O mais bacana do livro é perceber que os Deuses existem (fisicamente no livro e simbolicamente no mundo real) porque, mesmo não percebendo, adotamos no nosso cotidiano vários elementos que remetem a essas divindades, o que as alimenta. Nossa rotina é repleta de pedaços fantásticos, ou de origem extraordinária. Mas esquecemos disso.
Um exemplo disso é o personagem Wednesday, que contrata Shadow para o acompanhar em uma jornada pelo interior dos EUA. Wednesday é o nome em inglês para a nossa Quarta-Feira. A origem do nome vem de “Day of Woden” ou Dia do Woden, que é outra nomenclatura para Odin, o todo-poderoso da mitologia nórdica. Em espanhol, seria Miércoles ou Dia do Mércurio (o deus romano da venda, lucro e comércio). A língua portuguesa adota liturgia católica para os dias da semana, o que bagunça tudo.
Brasil também é cheio de nomes e significados maiores que acabam caindo no esquecimento. Copacabana pode ter origem na língua quíchua (que significaria “lugar luminoso”, “praia azul” ou “mirante do azul”), do Império Inca, ou na língua aimará (“costa do lago” por ficar perto do lago Titicaca e com ligação a uma divindade inca), falada na Bolívia. De acordo com a Wikipedia, há relatos que nesse local boliviano havia uma divindade chamada Kopakawana, que protegeria o casamento e a fertilidade das mulheres. O curioso é hoje em dia Copacabana, no Rio de Janeiro, ser bastante conhecida justamente pelo turismo sexual.
Outro exemplo brasileiro é o termo “açaí” é oriundo do tupi yasa’i, “fruta que chora”, numa alusão ao suco desprendido pelo seu fruto. Segundo diz a lenda, uma mãe indígena, inconsolada pela morte dos filhos, passa os dias chorando no local onde foram enterrados. Um dia, a tribo vai procurá-la, mas só encontra a árvore de açaí no mesmo local onde a mulher costumava ficar.
Meus pais saíram do interior de Minas Gerais e moraram boa parte da vida adulta na Tijuca. Criaram os filhos na região e eram quase vizinhos do Maracanã. Todas as tardes, revoadas de pássaros conhecidos como maritacas faziam um escarcéu nas árvores perto de onde a gente morava. Maracanã e Maritaca são nomes populares para as aves conhecidas como periquitão-maracanã (cujo nome científico é Psittacara leucophthalmus). Outro nome popular para o periquitão-maracanã é Araguari, nome da cidade de origem dos meus pais. É coincidência ou escolheram aquela região como local de moradia por alguma familiaridade simbólica?
Voltando ao livro, Wednesday (ou Odin) chegou aos EUA através dos imigrantes europeus. Com o tempo, foi deixado de lado pelas religiões cristãs. Sobreviveu por conta da fé de alguns seguidores de religiões pagãs, referências cotidianas e obscuras a ele e, acredito, pelas referências da cultura pop como filmes, gibis e livros. Ele se sente cada vez mais deixado de lado por novas divindades, como a Televisão, Mídia, etc. Com ajuda de Shadow, se reúne com outros antigos deuses para organizar algum tipo de resistência para uma aparente guerra que está porvir. Mas, nesse mundo de simbolismos e interpretações, nem tudo é o que parece.
Durante o percurso, Shadow encontra deuses do antigo Egito, Rússia, figuras folclóricas da Irlanda (um leprechaun badass) e vários outros locais. A maioria deles se encontra inserida dentro da nossa realidade cotidiana. Cada um atuando na sua área de especialidade, como em necrotérios ou no “mercado de sexo”. É o que sabem fazer e é o que esperam deles, como imigrantes. “Aqui não é minha terra natal. As pessoas não me conhecem mais e estou sem minha família. Que caceta devo fazer aqui?”, se perguntam. Todos seguindo o script que tinham em suas terras natais.
Mas há deuses como Hórus, que abandonou qualquer traço de humanidade e decidiu subsistir como uma ave carniceira.
A realidade mágica começa a invadir a “realidade real” de Shadow. Uma moeda de ouro que ele ganhou por engano em um “truque de mágica” (do leprechaun) ressuscita Laura, a esposa de Shadow que faleceu logo antes dele sair da prisão. A magia acontece como um detalhe, uma distração quando a gente não está olhando. É uma mistura de realidades como quando estamos cansados demais e não sabemos se estamos sonhando ou realmente presenciamos tal fato. Bem bacana.
Aos poucos, Gaiman vai construindo um mundo onde deuses povoam nas entrelinhas a realidade. O ritmo é lento, mas ele envolve o leitor. Há uma história paralela que se passa em uma pequena cidade no interior dos EUA, Lakeside. É essa história, mais do que a Guerra dos Deuses da trama principal, que mostra como realmente opera o mundo de Deuses Americanos.
A beleza do livro é essa e perceber que esses deuses, criaturas que julgamos ser algo do passado ou do folclore, ainda está presente entre nós. Mesmo que seja no simbolismo. Muita gente baixa a cabeça para a “palavra do pastor” em troca de prosperidade financeira, e assim por diante…
No final, Shadow (e nós) é apenas marionetes de um jogo maior. Um jogo simbólico que se desenrola, nos afeta (imagina um “isso não é de Deus” para um campo simbólico maior) e que continuamos a seguir por ignorar essa realidade escondida bem diante dos nossos olhos.
Não vou falar muito da história em si e dos pormenores, mas vou apontar algumas semelhanças a outros universos nerds. A trama tem um quê de As Guerras de Trolltooth (aquele livro de ficção no mundo dos livros-jogo de Steve Jackson). Os Novos Deuses parecem um tanto inspirados na Tecnocracia, do roleplaying game Mago: A Ascenção. Há até uma Umbra, também de Mago e Lobisomem: O Apocalypse. É bacana como ele descreve o mundo espiritual, como uma espécie de bastidor de teatro que ganha vida ao descer as cortinas. Há todo um mundo que não conhecemos.
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