Arthur é um hooligan de rua que descobre a natureza nobre e tem que colocar a cara a tapa pra retirar o tio usurpador do trono da Grã-Bretanha. Muitos críticos não gostaram e o filme não se pagou, de acordo com o IMDB. Com orçamento de US$175 milhões, a película arrecadou um pouco mais que $140 milhões no mundo toda.
Eu curti. Revi algumas vezes na TV. Curto o clima e as ideias. Poderia ser melhor amarrado e menos sisudo. A impressão é que, por se tratar de uma das lendas formadoras da Inglaterra, Guy Ritchie tentou fazer algo um tanto solene e cerimonioso. Então tem uma edição mais lenta que outros do mesmo diretor, como Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.
Outro fator que também pode ter pesado contra é o cansaço da audiência com personagens de Domínio Público, como Robin Hood e o próprio Rei Arthur. Segue um vídeo bacana sobre o assunto:
Um filme de 2004, com Clive Owen, já havia tentado abordar o lenda pelo viés histórico. Uma procura nos arquivos do IMDB permite verificar que volta e meia o personagem é abordado pela cultura pop.
A lenda de Arthur foi formada e contada de acordo com a mídia mais adequada da época, como o livro A Morte de Arthur, de Thomas Mallory, que compilou textos de livros ingleses e franceses sobre o mito arthuriano. O vídeo a seguir aponta que a primeira menção da história a Arthur foi num poema celta chamado Goddodin, mesmo nome de um antigo reino situado ao sul de onde hoje é a Escócia e a norte da Inglaterra. O poema fala de um guerreiro chamado Gwawrddur, da época das invasões saxãs ao território inglês após a saída dos romanos:
“que era habilidoso em matar os inimigos, mas não era nenhum Arthur”.
Segue o vídeo sobre história da lenda do Rei Arthur:
Em resumo, a lenda vai se formando através das eras com diversos autores acrescentando contribuições próprias à história. Assim surge Myrddin (ou Merlin, no início era só um sábio conselheiro), os Cavaleiros da Távola Redonda, a espada mágica Caledfwlch (futuramente Excalibur), o triângulo amoroso entre Arthur, Lancelot e Gwenhwyfar (ou Guinevere ou Genebra, a depender da língua), a Dama do Lago e por aí vai. Não existe uma narrativa canônica e não-canônica. Entendi que é basicamente tudo não-canônico no sentido mais fiel de “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. Por isso, a lenda do Rei Arthur é tão confusa em termos gerais.
Voltando ao filme, muitos criticaram o fato dele ser pouco “arthuriano”. Não há muita nobreza e ele só resvala em certos aspectos da lenda. Também não há o viés histórico como a versão de 2004. A película começa com uma batalha épica, com elefantes monstruosos controlados pelo mago Mordred. É magia fantástica com ambientação medieval. O rei Uther, pai de Arthur, pega Excalibur e cavalga um cavalo em direção a Mordred pra acabar a batalha. É uma cena bem fodona e dá vontade de saber mais sobre Uther. Eric Bana tá muito bem no papel.

Finda a batalha externa, Uther sucumbe a um golpe de estado arquitetado pelo próprio irmão Vortigern (Jude Law, sempre muito bem). Arthur vira órfão, consegue fugir e é criado em um bordel de Londinium e nas ruas da cidade. Com o tempo, esquece a origem nobre e passa a sobreviver de pequenos furtos até virar uma espécie de protetor do bordel onde cresceu e líder de uma das gangues locais. Aprende luta de rua, diplomacia rústica e finanças “de crime”. Adquire uma rivalidade com vikings/saxões, que negociam tratados com a corte de Vortigern, um déspota.
É aí que entra Excalibur. Vortigern está construindo uma torre que funcionará como uma espécie de catalisadora de magia, pra aumentar o próprio poder. Mas a magia ainda é uma força da natureza e ainda busca o equilíbrio. Então o poder do mal cresce, um lago magicamente seca e mostra a todos Excalibur, presa em uma pedra. Arthur eventualmente acaba pegando a espada, conhecendo uma maga (que pode ser Merlin mas não se fala o nome dela no filme) e uma galera que vai lutar contra o tio déspota.
Curto a lógica que estabeleceram para a magia. É uma força extraordinária, mas obedece regras de equilíbrio da natureza. Se o mal cresce, o bem começa as dar as caras para fazer contraponto. Isso gera um ordenamento pro mundo do filme que o torna mais rico.
Vortigern é inspirado em histórias e lendas relatadas em livros. Ele realmente teria se aliado aos saxões, que depois deram trabalho aos bretões. E, segundo as lendas, Vortigern (que no mundo real nunca foi tio de Arthur) tentava construir uma torre, mas sem sucesso, até ser salvo por Merlin. No filme, ele era aliado de Mordred e tem que pagar um alto preço para conseguir acabar com Uther: mata a própria esposa como oferenda a umas “sereias das trevas” para conseguir poder suficiente e finalmente se tornar rei.
Arthur, na companhia dos novos amigos da “Resistência”, tem que fazer um teste de nobreza/poder numa caverna mágica (ou “Terras Negras”) em uma cena desnecessária, mas bacana, pra ver se era digno da espada.

Nessas Terras Negras, ele tem um flashback sobre a morte do pai dele e começa a se lembrar um pouco da própria história.
Outra cena meio desnecessária (ou só longa demais) foi a que tentam fazer uma emboscada contra Vortigern. O plano dá errado e acontece a inevitável cena de perseguição de filmes de ação. Corre de um lado, corre de outro. Morre um personagem, outro some e é tanta coisa acontecendo que não dá tempo de sentir empatia pelos caras. Mas percebe-se que Arthur está cercado de hooligans como ele: tanto seus companheiros de rua como os novos da “Resistência” são pessoas sedentas por derrubar o tirano, sem planejamento estratégico.
É aí que Arthur começa a usar a cabeça. Ser menos hooligan e a pensar como alguém com aspirações mais nobres deve pensar. É como nos diz o diálogo entre Bedivere e A Maga sobre a jornada nas Terras Negras:
Bedivere: Ele não vai sobreviver sozinho às Terras Negras!
A Maga: Você não quer que tudo dele sobreviva. Esse é o objetivo. Há de se quebrar completamente o antigo Eu dele. Quer que ele pense grande? Dê a ele grande para pensar.
Logo começam a sabotar os esforços de Vortigen, ao invés de confronta-lo pessoalmente. A população aproveita a brecha e começa a se revoltar contra o déspota. Até que o rei consegue capturar o filho do amigo Black Lack, morto na perseguição mencionada anteriormente, e a Maga (que talvez tenha se deixado capturar para levar Arthur à ação).
Há uma cena com a Dama do Lago mostrando a Arthur um potencial futuro onde Vortigen vence. É interessante pensar que há uma paralelo entre a Dama do Lago e as sereias que pedem sacrifício e orientam o déspota. Todas são guias ligadas à água. Talvez isso tenha uma explicação. Talvez a intenção seja mostrar que um é o espelho do outro.
Há uma batalha no castelo do rei e Vortigen novamente se utiliza do recurso de sacrificar um ente querido à sereias em troca de poder pessoal. Se antes foi a esposa, dessa vez é a filha. É realmente uma cena dolorosa de se ver e até sinto uma empatia pelo personagem do Jude Law. Ele engrandece muito o filme ao dar uma certa humanidade ao irmão de Uther.
É de se perguntar se de certa forma Excalibur sacrificou Uther e a esposa para que Arthur pudesse ganhar um enorme poder pessoal quando adulto. É assim que a magia funciona no filme, certo? Exige algum sacrifício pessoal.
No final Arthur consagra os companheiros de batalha nos Cavaleiros da Távola Redonda (juro que não esperava por essa) e se torna rei. Todos eles devem deixar a mentalidade hooligan pra trás. É o que acontece quando os saxões chegam para cobrar o que lhes é devido no acordo que fecharam com Vortigen. São os mesmos saxões que tinham rivalidade com Arthur no começo do filme.
Assim se dá o diálogo:
Saxão: Devo lembrá-lo que temos uma frota de 3 mil navios controlando os mares, ao redor de sua ilha. Não seria sábio desagradar meu rei.
E a resposta de Arthur:
Arthur: Não. Quero dizer, me desculpe. Você cometeu um grande erro. Não está mais lidando com o homem que conheceu antes. Está lidando com a Inglaterra e todos os súditos sob a proteção do Rei. Você tem uma escolha. Pode se ajoelhar à Inglaterra…
Ou eu desço do trono e você poderá lidar com o homem que conheceu antes. E veremos o que acontece.
O saxão se ajoelha:
Arthur: Bem, agora que isso saiu do caminho, vamos comer. Por que ter inimigos quando se pode ter amigos?
Isso que curto no filme é essa a mensagem. Rei Arthur é algo muito distante da nossa realidade. Ao deixar um pouco de lado a mitologia e trazer o personagem para algo mais próximo da vivência da rua, Guy Ritchie consegue fazer com que o telespectador se compadeça de Arthur e até se veja nele e se espelhe na proposta de “deixar a mentalidade das ruas pra trás e almejar algo melhor”. Não é algo que vejo em outros filmes com a temática arthuriana. Esse é o grande mérito da película.
Comentários