Formatinho · 16 de dezembro de 2018

Pequeno retrospecto sobre o funk carioca

Segue uma resposta minha no Quora para a pergunta: “Por que o Funk faz tanto sucesso?”. Ilustro o texto com fotos da série Totoma!, da fotógrafa Daniela Dacorso. Não pedi permissão para colocar as fotos aqui, mas é porque curto demais as imagens dela e vou dar o devido crédito em tudo.

Foto: Daniela Dacorso (série Totoma!)

Como o Eduardo Brito disse, o funk é um tipo de música que dá “vazão” à vontade de se divertir de uma classe social que nunca teve acesso aos bailes e boates da classe média. E também atua em várias “frentes”: romântica, pop e proibidona.

Se tiver saco pra ler, vou fazer um retrospecto sobre as origens do funk.

Antes de se tornar uma expressão de cultura do morro, os bailes funks foram uma expressão de cultura da periferia (do asfalto ou do morro). Com o advento dos anos 1970 e da música negra norte-americana (funk, soul, black), a periferia adotou esses ritmos assim como tinha adotado o rock na década de 1960 (e periferia nessa época era Tijuca, Méier, Olaria…). A periferia sempre quis/quer dançar.

Daí os bailes viraram bailes funk. Na cena, tinham (e ainda têm) nomes como Gerson King Combo e Tony Tornado. Nomes do mainstream brasileiro, como Tim Maia e Roberto Carlos também ecoavam um pouco esse movimento. O DJ Big Boy (e o Ademir Lemos) ajudavam a popularizar o ritmo com bailes da pesada no Canecão.

A década de 1980 chegou trazendo a popularização da música eletrônica. E novamente a periferia se mostrou aberta às novas tendências. Segundo o DJ Marlboro, Planet Rock, de Afrika Bambaataa e Soulsonic Force, foi a pedra fundamental do que ficou conhecido como funk carioca. — misturando o funk de James Brown com a música eletrônica do Kraftwerk.

Na década de 1960, a canção Chega de Saudade, de João Gilberto, inspirou a Bossa Nova, Caetano Veloso, Jorge Ben, Erasmo e Roberto Carlos e toda a geração que se lançou logo depois dessa música (todas as biografias dessas pessoas mencionam Chega de Saudade, de uma forma ou de outra). Planet Rock teve o mesmo efeito na periferia (e principalmente nos morros cariocas). Uma galera passou a ser arriscar nas baterias eletrônicas, como a Roland TR-808, que facilitava demais a produção de música (dispensando o uso de uma banda).

Os DJs não se limitaram a Planet Rock e tocavam outras músicas que começavam a despontar lá fora, como o ritmo Miami Bass — que quase estourava as caixas de som. Esse estilo de som foi criado e lançado em 1985 por engano, segundo o criador do ritmo, Amos Larkins II (tem mais sobre o assunto aqui).

O Rio de Janeiro adotou samples como o 808 Volt Mix, que servia como base para vários MCs (Mestres de Cerimônia). Dá uma ouvida em Rap do Solitário, do MC Marcinho. O DJ Sany Pitbull também aponta as batidas 122 BPM (de Willesden Dodgers) e Let’s Get Started (de Thumbs & The Hoestiles sobre o tema da série de TV The Munsters) como inspiração. Soma-se isso à vocais improvisados e surge o funk carioca.

Além das batidas, no início as músicas tinham um lado cronista, retratando realidades e vivências dos morros da cidade. Acho que todos já ouviram o Rap do Silva, do Mc Bob Rum (“Era só mais uma Silva, que a estrela não brilha, ele era funkeiro mas era pai de família”) ou Rap da Felicidade (“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”). Repara que muitas das canções começavam com “Rap”, que é um dos pilares do hip-hop norte americano. Rap (e descobri isso escrevendo essa resposta) é uma sigla para rhyme and poetry (ou ritmo e poesia).

No entanto, quando as músicas começaram a cair no gosto da classe média — e a mídia foi investigar — , virou tudo “música funk” pro grande público por serem tocadas nos antigos bailes funks da periferia. Houve uma reação de parte da classe média conservadora e muita discussão se proibiam ou não os bailes. Isso foi no início e meados dos anos 1990 e esse debate ajudou a colocar o funk na moda.

Nessa época, houve explosão da guerra entre traficantes de drogas nos morros cariocas. Muitos MCs passaram a cantar músicas exaltando “a cena” do tráfico de drogas, cantando os funks proibidões — que exaltam violência e a sexualidade explicita. Alguns MCs eram traficantes.

Isso deu gás pro movimento contra o funk.

De cronista da realidade da favela, o funk se voltou às batidas mais sensuais. Uma dessas batidas foi o Tamborzão, criado por volta de 1997 pelo DJ Luciano Oliveira (MC Sabãozinho) e DJ Cabide, que se aproxima bastante da batida do atabaque. Aqui uma matéria em português fala mais sobre isso. A tecnologia de gravação e cópias de CDs permitiu o Tamborzão se espalhar por aí.

Dá pra dizer que o funk então se dividiu em duas vertentes, o funk melody (ou charme) mais romântico (tipo Claudinho e Buchecha) e os proibidões, mais apelativos. E se espalhou pra além das fronteiras cariocas.

Até artistas gringos como a M.I.A., aquela cantora inglesa de origem tâmil, começaram a se inspirar e samplearam trechos da música nascida nas favelas cariocas.

M.I.A e Deize Tigrona na Cidade de Deus. Foto: Daniela Dacorso (série Totoma!)

Enquanto o funk melody se aproximava mais da música pop, ganhando mais espaço na mídia, o proibidão se voltou pra letras explícitas sobre sexo/zueira (tipo Um Tampinha Não Dói e Bonde do Tigrão). Então é um estilo de música que “ataca” em duas frentes e quando não atinge um público, atinge o outro e às vezes atinge os dois públicos ao mesmo tempo. Daí a popularidade.

Hoje ainda vale essa divisão, mas há uma mistura. A Anitta, que já foi MC Anitta, sempre atacou pelo lado mais romântico, mas ganhou popularidade quando investiu de vez na sensualidade (eu mesmo acho que qualquer coletânea de música dos anos 2000 tem que incluir Bang). É um funk que se aproxima mais do pop sexualizante dessa década. É mais pop que funk. O passinho veio a reboque e ajudou a colocar na mídia de novo esse lado do ritmo. Se liga em Oi Sumido, do Dream Team do Passinho — puro pop com raiz puramente brasileira. A Ludmilla também fez um pop com passinhos em Hoje.

Já os proibidões, por volta do ano 2008, batidas mais aceleradas, se aproximando mais do lado da música ritmada eletrônica. Em cima dessa base acelerada, tem também o lado sexualizante da mulher como Novinha Taradinha, que tem uma batida boa (tem que valorizar que o baixo é legal mas a letra escrota). Outros do estilo você pode ver aqui.

Outras músicas falam de drogas, capricham nas batidas e por isso conquistam muita gente de classe média. Já vi meninas que curtem Céu, Tulipa Ruiz e MC Carol (como a música Bateu uma Onda), sem preconceito.

Eu odiava funk quando adolescente, mas hoje sinto falta das músicas mais “das antigas” como MC Marcinho e MC Sapão. E reconheço que tem coisa boa sendo produzida hoje, que resvala no pop. Acho melhor que muito pop americano.

Uma coisa que curto na cena é o aspecto Faça Você Mesmo, que nos EUA a gente relaciona com o punk. Essa matéria do G1, mostra como o MC Fioti fez Bum Bum Tam Tam (que tá bombando no Líbano, segundo amigo meu):

Usou o que tinha na hora: um celular como microfone e um notebook “cheio de vírus, o pior que tem”.

(…)

“Comecei a pesquisar alguns tipos de flauta, coisas antigas. E nisso eu achei a ‘flautinha do Sebastian Bach’”, conta. A descoberta foi por acaso: Fioti não sabia quem era o músico alemão e não sabe tocar o instrumento. Entre baixar a gravação da flauta que achou na internet, montar a batida, criar e gravar os vocais e produzir todo o resto da música, foram seis horas — o que ele considera “muito tempo”.

Os ruídos da gravação da voz no iPhone foram incorporados à faixa. Ele tentou regravar o vocal depois. ‘Mas saiu a essência, ficou aquele negócio de muita qualidade de estúdio. E o legal é isso aqui, que está natural.’

Depois de montar tudo no notebook “cheio de vírus”, ele só levou a faixa para a RW para mixar (fazer ajustes e regular graves e agudos). Terminou em um dia e, no outro a faixa já estava no YouTube.

Tem que levar em consideração também que redes sociais e mídias como o Youtube ajudam demais a divulgar o funk e estética do mesmo prum público bem amplo. Equipes como a do Kondzilla, que todo dia lança um vídeo novo, ajudam muito nesse sentido.

O que é legal nesse assunto todo: é pop nacional que não precisa de grandes empresas pra se lançar. Mais que o sertanejo (ainda bem dependente de gravadoras), rock (que passa tempo DEMAIS esbravejando contra outros estilos), MPB e outros ritmos, o funk é o que melhor faz o uso das novas tecnologias — como sempre fez. E isso cria todo um ecossistema de economia criativa, com pequenas produtoras, dançarinas(os) e shows.

É legal que discursos “de academia” como o feminismo consegue penetrar um meio tão machista quanto o funk. Tá certo que muitas mulheres entendem que as músicas “são só pra dançar” e as letras “não tem nada a ver”, mas elas ouvem a mensagem que mulher pode apitar sim. Recentemente o Nego do Borel foi criticado por caçoar do público LGBTQ+, com o clipe Me Solta (que curto, talvez pela megaprodução do clipe).

O lado ruim é que é ainda um meio bem machista e, sinceramente, acho difícil que mude. Rola um fetiche por “novinhas” (geralmente menores de idade) e tem muita notícia sobre garotas que engravidam em Bailes Funk. E também rola álcool e droga em alguns bailes.

E é um saco porque tem muita fórmula de música e muita gente acaba caindo no tema “putaria”. Com tanta possibilidade de tema, dá pra falar sobre outros assuntos. Certo?

Mas aí vou ouvindo e filtrando o que curto e o que não curto. E faço a minha curadoria.

Pra finalizar o texto, a foto que mais curto da Dacorso: Mulher Melão contra a Fome Mundial. A imagem é puro meme Accidental Renaissance.

Foto: Daniela Dacorso (série Totoma!)