escrito originalmente em 10 de janeiro de 2010 para o antigo blog
O sambista Cartola é considerado, com razão, como um dos grandes nomes da música popular brasileira. Muitos músicos, pesquisadores e entusiastas apontam a sua origem humilde e seu propalado semi-analfabetismo como forma de enaltecer sua obra musical. Outros estão contentes em dizer simplesmente que Cartola era um gênio. Dessa forma, acabam ignorando toda a trajetória de sua formação musical.
De acordo com o livro, “Cartola, dos Tempos Idos”, da pesquisadora Marília Trindade Barboza, Angenor de Oliveira, o Cartola, esteve em contato com a música e com o samba em suas várias formas desde criança, o que explicaria o talento do sambista.
“O micróbio do samba me foi injetado pelo velho (seu avô, Luís Cipriano Gomes). Eu era muito garoto quando saía com toda a família no Rancho dos Arrepiados. E com minha voz, que era boa, cheguei à ala do Satanás. Saímos eu, papai, que tocava cavaquinho profissionalmente no bando, minha mãe e meus irmãos”, disse Cartola, em 1977, ao jornalista Ronaldo Bôscoli, para a revista Manchete.
Ranchos eram parte da tradição carnavalesca do início do século XX. Essas agremiações eram cortejos descendentes das Folias de Reis, e foram bastante influenciados por festividades negras, como os Cucumbis e Congos, e por tradições musicais populares portuguesas. Nos ranchos, tocavam-se instrumentos de sopro e corda, não havendo instrumentos de percussão.
Foi nessa época, que Cartola começou sozinho a aprender a tocar cavaquinho. Ele aproveitava os momentos que seu pai, Sebastião, saia pra ficar mexendo no instrumento, procurando repetir o que ele e os instrumentistas do Rancho dos Arrepiados faziam.
Quando o avô de Cartola morreu, sua vida mudou radicalmente. Luís Cipriano Gomes era cozinheiro de Nilo Peçanha, o ex-presidente do Brasil, e quem praticamente sustentava a família. Com a morte do patriarca, tiveram todos que se mudar do conforto de Laranjeiras para o morro da Mangueira, que, segundo Cartola, “não devia ter mais de 50 barracos na época”.
No morro, o carpinteiro Sebastião fez Cartola começar a trabalhar, para ajudar com as despesas em casa. Este, arredio que era, não durava muito nos empregos e aproveitava esses períodos de folga para freqüentar as “bocas” da Mangueira, que eram casas onde se faziam as batucadas (danças e jongos para cultuar deuses afro-brasileiros).
Cartola deu o seguinte depoimento para O Globo, em 1972: “Samba duro e batucada é a mesma coisa. A gente fazia isso a qualquer hora, em qualquer dia. Juntavam umas vinte pessoas — homens e mulheres — e a gente começava a cantar. Apenas uma linha ou duas do coro e os versos improvisados. Isso é que é partido alto. Os únicos instrumentos eram o pandeiro, o violão e o prato e a faca (prato de comer e faca de cortar carne; a faca raspa o prato) e no coro as mulheres batiam palmas. Aí um — o que versava — ficava no meio da roda e tirava um outro qualquer. Aí dançando e gingando, mandava a perna. O outro que se virasse para não cair”.
Quando Cartola tinha 18 anos sua mãe, Dona Aída, morreu. Sendo ela que acalmava os ânimos de Sebastião em relação ao filho, o malandro logo foi expulso de casa pelo pai. Quando voltou para casa, Cartola descobriu que o pai havia abandonado a Mangueira, deixando um recado ao filho: “Vou-me embora deste morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer vergonha”.
O sambista então arranjou um barraco próprio e caiu na vida. Depois de alguns meses freqüentando a zona do meretrício, sem se alimentar direito, Cartola logo ficou doente. Dona Deolinda, vizinha de barraco, passou a cuidar dele, quase como uma mãe. Passado pouco tempo, ela se afeiçoou tanto a ele que abandonou o marido pra viver com Cartola.
Ao se recuperar, ele voltou a exercer a profissão de pedreiro, que começara a praticar quando tinha 15 anos. Nas horas de folga trabalhava como compositor e violonista nos bares locais, ao lado do amigo Carlos Cachaça e Gradim.
Pelo livro, as horas vagas eram muitas, pois Cartola largava tudo “para ir ficar na esquina, tomando umas e outras, tocando um violão ou fazendo um samba”. Nessa época, ele e os amigos se juntaram no Bloco dos Arengueiros para sair por aí e arranjar confusão, brigar mesmo, para competir com os blocos de outros morros.
Depois de certo tempo, cansado de toda aquela bagunça, Cartola fez o samba “Chega de Demanda” para juntar todos os blocos da Mangueira e dar um tempo nas confusões. Ele viu que era melhor fazer música que briga e se reuniu com os amigos, no dia 28 de abril de 1928, e fundou a Estação Primeira de Mangueira. O nome Estação Primeira foi porque a Mangueira era o primeiro morro depois da Central do Brasil que tinha samba. As escolas de samba foram fundamentais para a divulgação desse ritmo (cuja origem ainda é incerta, pois uns dizem que é carioca e outros, baiano) em todo o Brasil.
Nessa época o samba era cantado no fundo da casas, porque era tido como coisa de marginal, de malandro, e mesmo assim a polícia aparecia sempre aparecia para estragar a festa. Pouco tempo depois foi organizado concurso de samba com a Portela e a Estácio, que também tinham as suas agremiações de música. O samba logo ganhou a cidade e os músicos passaram a descer o morro para mostrar suas composições.
Cartola, orgulhoso, não descia. Se estavam interessados em suas músicas, que subissem o morro, dizia. Mário Reis então subiu e comprou Infeliz Sorte, que foi gravada não por ele, mas Francisco Alves, um dos maiores cantores populares brasileiros (famoso com Aquarela do Brasil). Depois disso, ele passou a vender mais músicas (Não faz amor, Tenho um novo amor, Divina Dama, Diz que foi o mal que fiz — todos em parceria com Francisco Alves), com a condição que fosse creditado como o compositor delas.
“Comecei a ficar conhecido lá embaixo, comecei a fazer negócio. Comigo e o Chico (Alves) sempre deu tudo certo. A confusão foi com Na Floresta, mas foi lá entre o Chico e o Sílvio Caldas. O Bucy Moreira tinha um samba que o Chico gostava da letra, mas não gostava da música. E a música do meu samba Na floresta encaixava direitinho na letra do Bucy, que se chamava Foi em sonho. Em cima dessa letra o Chico botou a música do meu Na Floresta. Aí minha letra ficou jogada fora. O Sílvio Caldas conhecia a letra e, um dia, resolveu botar uma música. E gravou. O Chico saltou, quis interditar o disco, coisa e tal. Mas o Sílvio convenceu o Chico de que ele só tinha comprado a melodia: ‘Você deixou a letra de lado e o Cartola precisa ganhar dinheiro1’. Aí o Chico resolveu deixar pra lá”.
O músico logo se tornou aproximou de Noel Rosa por causa de uma treta com José Gonçalves (ou Zé Com Fome) sobre a música Não Quero Mais. Em 1932, ele passou a dar uma canja no grupo Com que Roupa, criado por alguns sambistas em homenagem ao poeta da Vila. Ele tocava cavaquinho, fazia o acompanhamento das músicas e era tido como um bom solista. Nessa época começaram a surgir várias escolas de samba, tanto em que em 1934 foi fundada a União Geral das Escolas de Samba (UGES). Para sobreviver, Cartola trabalhava com qualquer função que aparecia. Era pedreiro, peixeiro, sorveteiro e teve diversas outras profissões. Encarava qualquer expediente para ganhar dinheiro.
O ano de 1933 foi aquele que teve a gravação do primeiro sucesso de Cartola: Divina Dama, por Francisco Alves, na etiqueta Odeon. No mesmo ano Angenor formou com o compositor Wilson Batista e Oliveira da Cuíca (o primeiro cuiqueiro da era do rádio) um trio vocal-instrumental que chegou a excursionar a Barra do Piraí mas se desfez logos depois.
Angenor estava sempre estudando o violão, aprimorando a sua técnica. Seu parceiro, Carlos Cachaça, era um grande letrista e orador oficial da escola. Os dois juntos se complementavam, mas Cartola viu que precisava melhorar as suas letras e passou a estudar poesia. Leu Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Guerra Junqueiro (seu preferido, segundo a autora) e algumas coisas de Camões até se dar por satisfeito. Carlos Cachaça contava que Cartola era chato para parcerias musicais. Fora ele, Angenor só foi ter outros parceiros no fim da vida. “A gente compunha assim: a letra vinha com uma música. Um fazia e o outro aperfeiçoava. Era recíproco”, disse certa vez.
Em 1935, o samba passou a fazer oficialmente parte do Carnaval carioca, por decreto do então prefeito Pedro Ernesto Batista. De certa forma, esse foi o primeiro reconhecimento oficial do trabalho feito por Cartola e de outros sambistas. Sua vida no entanto não mudou. O músico continuou compondo e vivendo na penúria. Ele, que era mestre de harmonia da Mangueira e compunha para a escola de samba, chegou a penhorar as medalhas que ganhou em um concurso de samba para se manter.
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