Formatinho · 10 de fevereiro de 2018

O choque de ordem e o carnaval de rua carioca

Como ocorreu pelo menos três vezes na história do Rio de Janeiro, o poder público está participando mais ativamente do carnaval de rua da cidade. A cada ano que passa, cresce cada vez mais o número de blocos de carnaval, assim como o de foliões. Isso aumenta a desorganização da cidade, com denúncias de roubos, bagunça, sujeira e xixi na rua, o que revolta os moradores que não curtem o período carnavalesco. Com a escolha do Rio como um dos lugares que vai sediar a Copa do Mundo de 2014 e a cidade-sede das Olimpíadas de 2016, a prefeitura passou a querer organizar o carnaval carioca e dotar o município de uma melhor infraestrutura para receber os blocos de rua.

Essa reorganização do espaço público vinha ocorrendo primeiro em outras esferas sociais da cidade, como nos chamados “choques de ordem”, que até ganhou uma Secretaria Municipal própria. Com os “choques de ordem”, moradores de rua são recolhidos para abrigos, materiais ilegais vendidos nas ruas são apreendidos, publicidade irregular é retirada e guardadores de carro sem licença são presos.

No carnaval de 2010, o “choque de ordem” consistiu em prender quem urinava na rua (reclamação constante de associações de moradores e de comerciantes), cadastrar todos os ambulantes que queriam vender cerveja e água durante o carnaval (e apreender o produto daqueles que não estavam cadastrados) e ordenar o horário e o local que os blocos de carnaval iriam sair, para que não houvesse desfile simultâneo, e assim, não tumultuando o trânsito. Como explicou secretário Especial de Turismo e presidente da Riotur, Antonio Pedro Figueira de Mello, no evento Desenrolando a Serpentina — organizado em agosto pela Sebastiana (Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro), que reúne alguns dos mais tradicionais blocos de carnaval de rua do Rio — até 2009, a ação da prefeitura para o carnaval era conceder, pelas subprefeituras, o “nada opor” (documento que permite algum evento acontecer em área pública) e colocar banheiros químicos nas ruas no percurso dos blocos de carnaval.

“Não fazia sentido pra mim como presidente da Riotur administrar o carnaval de rua da maneira como ele vinha crescendo, ou seja, só com a colocação de banheiros químicos. A gente ficava sabendo onde o Suvaco de Cristo saia. O Cordão do Boitatá a gente tinha conhecimento do percurso, assim como a Banda de Ipanema, mas vários outros blocos a gente não sabia onde eles estavam. Esse mapeamento foi fundamental para que pela primeira vez a gente colocar infraestrutura na cidade”, disse ele.

O primeiro ato tomado por essa nova gestão da prefeitura no sentido de ordenar o carnaval foi baixar o chamado “decreto dos blocos”, em maio de 2009, que determinou o tempo máximo que um bloco pode ficar na concentração e desfilar e que ele tem que pagar direitos autorais ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação), dentre outras coisas, pois caso contrário, poderão ter o pedido de desfile indeferido no ano seguinte. Apesar disso, “não teve nenhum bloco que a Riotur chegou e disse ‘você não vai poder sair’. Nenhum. O que a gente fez foi organizar os desfiles”, frisou o secretário.

Eles também tem que fazer o cadastramento de todos as agremiações que queriam sair no carnaval do Rio. “Nesse momento, muitos acharam que era uma ação repressora da prefeitura, que ela queria intervir na vida dos blocos. A prefeitura tinha que ter um raio-x desse carnaval para entendê-lo. Quase 99,9% dos blocos se cadastraram. Isso foi importante para a gente saber onde íamos colocar os nossos serviços e orientar a Comlurb, Cet-Rio, Guarda Municipal”, afirmou Antônio Pedro.

Com isso estabelecido, a cidade adotou para o carnaval o “caderno de encargos”, normalmente usado para o Reveillón. Com esse caderno de encargos, a empresa ganhadora de uma licitação ganha a permissão de patrocinar algum evento em troca de dotá-lo de infraestrutura como banheiros públicos, atendimento médico (como ambulâncias), controle de comércio ambulante, programação visual (de filipetas e site turístico) e decoração visual com motivos carnavalescos da avenida Rio Branco. Segundo Antônio Pedro, só com esse caderno de encargos, a prefeitura conseguiu economizar R$ 5 milhões em 2010.

Foi criado então uma Coordenadoria de Blocos de Carnaval com 40 funcionários espalhados em toda a cidade acompanhando a festa de rua para saber se o caderno de encargos está sendo cumprido e assessorar os blocos e a cidade. “Era muito mais fácil deixar na mão da subprefeitura que vai ali e dá o ‘nada opor’ a quem quiser, mas eu tinha grande medo que o carnaval de rua acabasse por causa de alguma briga. A ideia foi dar o máximo de conforto para os foliões, os não-foliões e os turistas”, disse o secretário.

De acordo com a estatísticas da Riotur, em 2010 foram 465 blocos de rua realizando 670 desfiles que juntaram 2,491 milhões de foliões, sendo que cerca de 800 mil eram turistas estrangeiros e de outras cidades do Brasil. Para o ano que vem, o patrocinador vai ter que dotar a cidade de uma infraestrutura ainda maior. Segundo o caderno de encargos do carnaval de 2011, a quantidades mínimas de 6.400 banheiros químicos (o dobro em relação a esse ano); 800 diárias de controladores de tráfego (300 a mais que em 2010); 50 faixas e 250 galhardetes de sinalização de trânsito; 80 diárias de UTI móvel e a publicação de um guia com o roteiro dos blocos com tiragem mínima de um milhão de exemplares (o dobro do exigido anteriormente). Além da avenida Rio Branco, a avenida Princesa Isabel também será decorada com motivos carnavalescos.

Fora dotar a cidade com maior infraestrutura, através do caderno de encargos, outra mudança para o carnaval do ano que vem foi o veto da prefeitura ao desfile de blocos de carnaval na rua Dias Ferreira, atendendo a reclamações de moradores do local.

Este ano ela ficou completamente interditada pois dois blocos desfilaram ao mesmo tempo na via. Em um extremo dela estava o ‘Azeitona Sem Caroço’, que há 13 anos sai no carnaval. No outro, o ‘Sapucapeto’, que desfilava pela primeira vez. Isso impediu completamente a circulação de moradores porque atraiu uma quantidade enorme de foliões (muito mais do que quando era apenas o Azeitona), causando nas palavras do presidente da Associação de Moradores e Proprietários de Prédios do Leblon, Augusto Boisson, “um apocalipse urinário”. Antonio Pedro, no entanto, disse que ainda há possibilidade de haver bloco na rua contanto que eles não passem pela rua General Venâncio Flores, pois ela liga o bairro à praia.

“Não teve nenhum bloco que a Riotur chegou e disse ‘você não vai poder sair’. Nenhum. O que a gente fez foi organizar os desfiles”, frisou o secretário.

Esse veto acaba com o percurso tradicional do ‘Azeitona Sem Caroço’, formado por amigos frequentadores do Bar Azeitona, na Dias Ferreira. Há 13 anos eles saem do bar, desfilam pela rua General Venâncio Flores, passam para a avenida Ataulfo de Paiva, depois seguem para a rua Bartolomeu Mitre e retornam para a rua Dias Ferreira, onde ocorre dispersão. Dessa forma, talvez o bloco tenha que ficar só na concentração. O ‘Sapucapeto’ é um bloco formado pelo sambista Leandro Sapucahy e pela estilista Isabela Capeto. Sua estréia ocorreu no Vivo Rio Summer e ele costuma fazer shows em eventos em lugares como o Jockey Club que são frequentados por artistas e famosos em geral e conta com discotecagem de Djs famosos como o DJ Marlboro. Ele se concentrou em frente à loja da estilista, Isabela Capeto, na Dias Ferreira.

Esse é um exemplo claro de como os novos blocos podem acabar interferindo no carnaval feito pelos antigos blocos da cidade se não houver uma organização maior da data e horário de desfile. O ‘Sapucapeto’ não pediu licença para desfilar em 2011, disse Alex Martins titular da Coordenadoria de Blocos, lembrando que o estabelecimento da estilista mudou de endereço este ano.

A proibição de desfilar na rua General Venâncio Flores e possivelmente na Dias Ferreira foi a segunda mudança de percurso imposta pela prefeitura em 2010 a um bloco. No começo do ano, o bloco do Afroreggae, que iria desfilar no domingo de carnaval na orla da Zona Sul, foi transferido para a Ilha do Governador pois já havia um desfile programado para aquele dia. O regente do grupo, Altair Martins disse ao jornal O Globo que não viu problemas na mudança. “Escolhemos um lugar pouco visto pela mídia, com alto índice de infestação do mosquito da dengue. A gente veio aqui trazer toda a energia do AfroReggae para conscientizar a população sobre esse problema”, afirmou.

Em 2010, foram 465 blocos de rua em 670 desfiles que juntaram 2,491 milhões de foliões. Cerca de 800 mil eram turistas estrangeiros e de outras cidades do Brasil.

Segundo o secretário de Turismo, outras mudanças como essa podem acontecer para distribuir a quantidade de blocos por toda a cidade, já que a maioria (73,29%) deles desfila hoje pela Zona Sul. Em segundo lugar, em número de desfiles, veio a Zona Norte (9,54%) Barra da Tijuca (7,33%), Zona Oeste (5,68%) e Tijuca e Centro (4,16%) de acordo com dados da Riotur.

Para mudar essa porcentagem, o então secretário especial de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, disse ao Globo logo depois do carnaval de 2010 que, para melhor distribuir a quantidade de blocos pela cidade, poderia haver fusão de agremiações. Essa sugestão foi repudiada por Antônio Pedro e por Rita Fernandes, presidente da Sebastiana. “Fusão de blocos, nem pensar. O Bethlem trata de ordem pública. Fusão, só se os blocos quiserem. A prefeitura não vai interferir”, afirmou Antonio Pedro. “Fusão de bloco não existe. Eles são autônomos, têm identidade. Pode haver redistribuição geográfica”, concordou Rita Fernandes.

Essa redistribuição geográfica, no entanto, não vale para todos. Muitos blocos têm uma ligação com o lugar que desfilam, como o ‘Nem Muda Nem Sai de Cima’, que sai no bairro da Muda, na Zona Norte, formado por frequentadores do bar Dona Maria (também na Muda) e atrai bambas do samba como Aldir Blanc, Beth Carvalho e Moacyr Luz. Já outros, como o ‘Chora, Me Liga’, criado em 2010 e que desfilou no Leblon, não tem tradição nenhuma e, pela lógica que blocos antigos e tradicionais tem prioridade no desfile sobre os novos, pode ser transferido para qualquer parte do Rio. Esse bloco é formado pela dupla sertaneja goiana Guilherme & Santiago que também organizou o bloco ‘E daí?’ que desfilou na Barra da Tijuca e cuja “marchinha” foi adaptada para forró e axé. Pode causar estranheza um bloco de músicos sertanejos, mas há tempos a cidade do Rio abraça qualquer tipo de manifestação artística em seu carnaval.

Apesar dessa liberdade, alguns foliões e parte da imprensa reclamaram da “baianização” do carnaval carioca (enquanto na Bahia, a folia é feita em cima de trios elétricos e arregimentam multidões, no Rio, a maioria dos blocos desfila na rua) e o aumento da utilização da folia para capitalizar a própria carreira artística. Preta Gil lançou o bloco ‘A Noite Tá Preta’ onde cantou “axé music”. Carlinhos de Jesus desfilou com o ‘Dois pra Lá, Dois pra Cá’ e foi criticado elo uso das cordas que circulavam a banda e quem havia comprado a camisa do bloco (ou abadá, como lembraram alguns). O ‘Empurra que Pega’ também usou o mesmo artifício e o Cordão do Boitatá também tinha uma área reservada para quem havia comprado a sua camisa.

Essa prática de privatizar o espaço público com cordas não é nova no carnaval carioca. Durante o Desenrolando a Serpentina, uma foliã reclamou para Antônio Pedro sobre uso de cordas por famílias para reservar um espaço onde podem assistir o desfile do ‘Cordão do Bola Preta’ com suas famílias que ocorre há tempos. Ela explica que essa prática dificulta os foliões acompanharem o desfile do bloco. Antônio Pedro disse que os órgãos de fiscalização vão atuar para acabar com isso pois muitas pessoas lucram com tal prática, o que é proibido.

Outra fonte de conflito é entre a empresa ganhadora da licitação do caderno de encargos (que em 2010 foi uma cervejaria e em 2011 foi a mesma empresa e uma companhia bancária) e os blocos e seus patrocinadores (que também são cervejarias). A organizadora de um dos blocos de carnaval reclamou no Desenrolando que alguns patrocinadores reclamam de disputar espaço com a patrocinadora oficial do carnaval (que ganhou a licitação) o que pode ajudar a diminuir a verba para algumas agremiações e sufocar o carnaval. Representante da companhia cervejeira, no entanto, afirmou que ela continua patrocinando os blocos que já tinha parceria normalmente.

Os blocos também reclamam que a prefeitura os vê como parte de um ‘evento carnavalesco’ que ajuda a capitalizar a imagem da empresa no exterior. Eles querem acabar com essa visão e serem vistos como uma manifestação cultural. Um folião, da ‘Desliga dos Blocos’ (organização de blocos que são contra essas novas regras da prefeitura, pois consideram que a burocracia acaba com a espontaneidade do carnaval, o que consideram como a essência da folia) inclusive disse que a Secretaria de Cultura devia participar nesse ordenamento, não só a de Turismo.

O “choque de ordem” também acabou com algumas rodas de samba como as que ocorriam há seis anos na praça São Salvador, em Laranjeiras. Era a venda de cervejas para o público que ajudavam a bancar o desfile do ‘Bagunça Meu Coreto’. Isso ocorreu porque moradores da localidade reclamavam do barulho feito pelos sambistas. A prefeitura está no meio de um cabo-de-guerra entre moradores “do bem” e os foliões “baderneiros”. A corda ora pende para um lado, ora para outro. Se pender mais para os foliões, pode acabar dando o aval para a crescente bagunça da cidades e de dos Jogos Olímpicos de 2016 e da final da Copa do Mundo de 2014. Se pender para os moradores pode sufocar uma das manifestações culturais mais genuínas dos cariocas, como ocorreram diversas vezes na história do município.